quarta-feira, 3 de novembro de 2021

xícaras de café

Abro os olhos. Caminho até a cozinha; ligo a cafeteira e espero. No toca-discos Belchior me lembra que sou um Sujeito de sorte, pois 'ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro'. Pela janela os primeiros raios de sol começam a acordar meu corpo; o cheiro do café aguçam meus sentidos. A primeira xícara servida, lentamente me faz recordar dos invariáveis sonhos da noite anterior: mistos de lembranças, desejos, esperanças. Ao sorver a segunda xícara, um pouco mais desperto, planejo o dia que se apresenta. Nada muito profundo: um compromisso aqui, um 'olá' ali. Deixo que as coisas aconteçam como tem que acontecer: fluídas. Ao servir a terceira xícara, já bem acordado, removo os restos de café do filtro, deixo bem limpo o aparelho e o conservo pronto para, nesta noite, deixar tudo organizado para a próxima manhã: Abrir os olhos, caminhar até a cozinha, ligar a cafeteira e esperar.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

de vez em quando

de vez em quando
só de vez em quando
é que você encontra 
alguém 
com uma presença
e eletricidade
que combina com a tua
no ato
e nessa hora
geralmente é uma estranha
foi a um tempo atrás
eu andava por ruas diferentes
quando a uma quadra de distância
notei uma garota vindo
em minha direção
havia algo em sua postura 
e no seu andar que me atraiu
conforme nos aproximamos
aumentou a intensidade
de repente eu sabia toda sua história:
ela viveu a vida toda com homens
que nunca a conheceram
de verdade
quando ela chegou perto 
quase fiquei tonto
podia ouvir os seus passos
quando ela chegou perto
olhei em seu rosto
ela era tão bonita
quanto eu pensava que ela seria
conforme passamos 
nossos olhos transaram
e se amaram 
e cantaram
um para o outro
e então ela passou por mim
fui andando
sem olhar pra trás
aí quando olhei pra trás
ela tinha sumido
o que se deve fazer 
num mundo
onde quase tudo que vale a pena ter
ou fazer
é impossível?
entrei num café
e resolvi que
se algum dia
a encontrasse de novo
eu falaria:
"por favor, escuta, só preciso
falar com você..."
nunca mais a vi de novo
nunca mais a verei.
a rigidez de nossa sociedade silencia
o coração de um homem
você deixa ele
por fim
apenas com seus pensamentos

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Estrada

Entrou no carro. Sabia para onde tinha que ir mas não queria. Permaneceria se pudesse. Se houvesse o pedido para que ficasse. Não veio o pedido, vieram as lágrimas. O limpador de para-brisa removia as lágrimas do mundo. De dentro dele brotava tudo que gostaria - ou deveria - ter dito no momento crucial. Perdeu-se o momento, perderam-se as falas. Da estrada pouco lembra. O que ele vê é ela em toda encruzilhada e a cada parada de ônibus, ficando pra trás. Quanto mais se afastava mais lembrava e no lembrar ia esquecendo. Esquecia dos detalhes do rosto. Será que os lábios sorriram? E os olhos? Brilharam? Sabia que ficaria mais fácil a cada quilômetro andado. Parou no acostamento, desceu do carro e olhou para a estrada percorrida: queria aproveitar um pouco mais o mais perto que esteve dela.  

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Do final

 Eu deveria contar como tudo começou. Não contarei. Vou contar como tudo acabou. Afinal, de começos a gente pouco sabe: coincidências, destino, os astros, planetas, a lua, reencontros, desencontros. Um detalhe. Um pouco a pouco, dia após dia. Na verdade não sabemos bem ao certo quando se inicia. O final sabemos. Tem o dia e a hora exatos. Aquele breve mas interminável momento que os olhos cegam e há um suspiro mínimo e profundo. Foi assim que aconteceu. Havíamos apenas nós - talvez no meio de uma multidão. Não havia mais ninguém. Nossos olhares se encontraram, no meu rosto um sorriso, no dela um sorrir. Caminhamos ao encontro um do outro. Lentamente nossas mãos se tocaram. Um leve aperto. Aproximação. Com os olhos fechados e os lábios entreabertos nos beijamos. Durou 2 segundos e toda uma eternidade. Da mesma forma que não posso dizer se estávamos sós, não posso afirmar que isso realmente aconteceu. Nossa única certeza é que de qualquer jeito que esse tempo passou, o tempo passou pra nós. Era o fim. 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

breve

Os cabelos negros estavam soltos.
No rosto quase nada de maquiagem,
apenas um leve batom cobria seu lábios.
Dentro de um vestido florido seu corpo dançava.
Nos pés, sandálias completavam a simplicidade.
Tal simplicidade me arrebatou.
No cruzar de nossos olhos, os meu brilharam.
Sua voz tranquila me embalou.
Da sua boca emergiu um tímido sorriso e
nos gestos vagarosos e contidos
foi que me entreguei.

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

radiante

Ela estava radiante. E irradiava felicidade. Estava diferente: sua pele, seu corpo, suas cores, seu riso. Pernas que sustentavam o mundo e braços que alcançavam o céu. Sua voz mantinha a musicalidade aos meus ouvidos. Era a mesma. Tive ímpetos de aninhá-la em meus braços, de passar os dedos no seu rosto e de ouvi-la chamar meu nome. Não houve o momento. Nem num passado e nem num futuro. De qualquer forma eu sorrio. Como sol, continuará brilhante. Outros olhos há de iluminar. 

terça-feira, 8 de outubro de 2019

verdade

Eu sempre soube que não sou um bom escritor; nem tenho pretensão de sê-lo. Escrevo o que me soa como verdade. Na minha cabeça as frases se encaixam, os textos são fluídos e as imagens são coerentes. O papel não me aceita. Aliás, ele aceita tudo. Por isso as palavras são desconexas e as ideias estão dispersas. Das certezas que tenho é que quando desejos, atitudes e palavras não bastam todo o resto é insuficiente. E nada poderá ser mudado. Seguirei deixando fluir letras e sons e imagens mesmo sabendo que nada importa.